sábado, 1 de agosto de 2009

DO CONFUSO MUNDO À ILHA DOS AMORES

0 – Introdução

Falar sobre Os Lusíadas não tarefa fácil. Mas o que pretendo fazer é só convidar quem me veio ouvir para uma reflexão sobre o sentido da Ilha dos Amores. Não está em causa dizer grandes novidades nem grandes verdades, mas só pensar um pouco sobre esta narrativa, num ambiente diferente do da aula. Aliás talvez ele seja um dos trechos mais difíceis da epopeia.
A Ilha dos Amores alonga-se por 220 estrofes, o que corresponde a quase dois cantos (se considerarmos o tamanho médio dos cantos d’Os Lusíadas).
E é uma narrativa predominantemente não histórica, de ficção. E porque é ficção ecoam nela muitos textos líricos de Camões, que ajudam a interpretá-la. Eu vou considerar sobretudo estes dois fragmentos:

Verdade, amor, razão, merecimento
qualquer alma farão segura e forte;
porém, fortuna, caso, tempo e sorte
têm do confuso mundo o regimento.

(Do soneto Verdade, amor, razão, merecimento)

Mas a fraqueza humana, quando lança
os olhos no que corre, e não alcança
senão memória dos passados anos,
as águas que então bebo, e o pão que como
lágrimas tristes são, que eu nunca domo
senão com fabricar na fantasia
fantásticas pinturas de alegria.

(Da canção Vinde cá, meu tão certo secretário)

Na quadra do soneto, o poeta considera o confuso mundo, o mundo real (onde os nossos méritos pessoais pouco contam, pois tudo depende do acaso, do tempo e da sorte) e um mundo ideal (onde a verdade, o amor, a razão e o mérito dariam segurança à nossa vida).
No segundo fragmento, confessa ele que, para suportar as dores sem fim com que a vida continuamente o atormenta, fabrica na fantasia fantásticas pinturas de alegria.
Nos dois fragmentos são afirmados um mundo real, tormentoso, confuso, e um mundo idealizado de felicidade.
Nesta perspectiva, a Ilha dos Amores seria, globalmente, uma fantástica pintura de alegria oposta à realidade do confuso mundo.

Vejamos então o plano da narrativa:


Plano da Ilha dos Amores

1. Preparativos (por parte de Vénus)
2. A écloga:
a. O locus amoenus
b. O idílio (encontro amoroso)
c. O caso de Leonardo
d. A interpretação alegórica
3. O banquete:
a. O banquete
b. O canto profético
4. A lição pós-prandial:
a. A máquina do mundo
b. O anúncio profético
c. O regresso à Pátria na companhia das ninfas

Qualquer uma destas quatro partes da narrativa é importante e não deve ser isolada do contexto. A razão dessa importância varia para cada caso.


1 – Os preparativos

Aparentemente esta parte dos preparativos é a mais fácil e a menos problemática: Vénus, que sempre esteve com os navegantes desde o princípio da epopeia, resolve presenteá-los com uma ilha de delícias e põe tudo em marcha para conseguir este ojectivo.
Eu vou-me fixar apenas numa das muitas estrofes dos preparativos, que vem particularmente ao encontro da ideia que orienta as minhas reflexões. É a 28.ª do c. IX, que descreve as altas e inesperadas preocupações morais que movem Vénus. Insisto nas as altas e inesperadas preocupações morais que a movem. O narrador está a falar na terceira pessoa, mas a focalização é interna, revela o pensamento da deusa:

Vê que aqueles que devem à pobreza
Amor divino, e ao povo caridade
Amam somente mandos e riqueza,
Simulando justiça e integridade;
Da feia tirania e de aspereza
Fazem direito e vã severidade;
Leis em favor do Rei se estabelecem,
As em favor do povo só perecem.

Ela refere-se primeiro às ordens religiosas e depois aos políticos (talvez anacronicamente, pois se calhar está a falar do tempo de Camões e não do tempo do Gama). Mas parece o cardeal a falar; e é para corrigir situações destas que prepara a Ilha divina…
Quem diria que estas eram as suas preocupações! E os meios de que vai lançar mão serão os mais aptos para atingir tais fins?
É indispensável que quem orienta a leitura do episódio tenha em atenção estes objectivos. Caso contrário, um dia poderá ser apodado de aldrabão.

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