sábado, 1 de agosto de 2009

2 - A écloga

Camões escreveu várias éclogas. A écloga canta normalmente a vida dos pastores, mas canta sobretudo os seus amores. O espaço da écloga é o campo, não um campo qualquer, mas um locus amoenus, um campo de beleza ideal, perfeitamente ecológico. O carácter não realista desta composição convida ao sonho, à ficção. Momentos de écloga afloram frequentemente quer em muitas composições poéticas que não são propriamente éclogas quer mesmo n’Os Lusíadas (é o caso de muitos sonetos e redondilhas que têm momentos pastoris, na lírica, e o episódio da Linda Inês, o do Adamastor…). A Ínsula divina, onde os nautas se vão deparar com as Ninfas, teria de ser um espaço idealizado de écloga, um belíssimo locus amoenus, cheio de verdura, de águas cantantes e cristalinas e de sol:

Três formosos outeiros se mostravam,
Erguidos com soberba graciosa,
Que de gramíneo esmalte se adornavam,
Na formosa ilha, alegre e deleitosa.
Claras fontes e límpidas manavam
Do cume, que a verdura tem viçosa;
Por entre pedras alvas se deriva
A sonorosa linfa fugitiva.

Num vale ameno, que os outeiros fende,
Vinham as claras águas ajuntar-se,
Onde uma mesa fazem, que se estende
Tão bela quanto pode imaginar-se.
Arvoredo gentil sobre ela pende,
Como que pronto está para afeitar-se,
Vendo-se no cristal resplandecente,
Que em si o está pintando propriamente.

Reparar que estas estrofes são dum entendimento excepcionalmente fácil, bem ao contrário das que se lhes seguem, muito dependentes das Metamorfoses de Ovídio, livro de cabeceira de Camões. De reparar que isto não descreve toda a ilha, pois que lá existe um maravilhoso palácio…
É neste espaço, muito longe do confuso mundo, que o poeta situa a parte da fantástica pintura de alegria que é o encontro amoroso dos nautas com as ninfas, a que chamei idílio.
Para o meu propósito, basta-me tecer algumas considerações sobre duas estrofes desse texto, de quando Leonardo persegue a ninfa Efire, que simula não lhe querer corresponder:

Todas de correr cansam, ninfa pura,
Rendendo-se à vontade do inimigo;
Tu só de mim só foges na espessura?
Quem te disse que eu era o que te sigo?
Se to tem dito já aquela ventura
Que em toda a parte sempre anda comigo,
Oh, não na creias, porque eu, quando a cria,
Mil vezes cada hora me mentia.

Não canses, que me cansas! E se queres
Fugir-me, por que não possa tocar-te,
Minha ventura é tal que, ainda que esperes,
Ela fará que não possa alcançar-te.
Espera; quero ver, se tu quiseres,
Que sutil modo busca de escapar-te;
E notarás, no fim deste sucesso,
‘Tra la spiga e la man qual muro è messo’.

O texto é muito bonito, cheio de subtilezas maneiristas e conclui-se com uma citação de Petrarca.
Sabe-se que Leonardo representa Camões. Se na lírica o amor é para o poeta sempre ocasião para lamento, neste episódio de ficção, embora se faça claro eco desses lamentos, ele está fora do confuso mundo e por isso vai acabar bem sucedido, em alegria.
Não se justifica parar mais com o idílio, até porque é preciso distribuir o tempo por toda a narrativa. O que é indispensável é notar a interpretação alegórica que lhe dá poeta e que os planos de Vénus já continham. Ele alonga-se nessa interpretação. Veja-se por exemplo esta estrofe:

Que as Ninfas do Oceano, tão formosas,
Tétis e a Ilha angélica pintada,
Outra coisa não é que as deleitosas
Honras que a vida fazem sublimada.
Aquelas preminências gloriosas,
Os triunfos, a fronte coroada
De palma e louro, a glória e maravilha,
Estes são os deleites desta ilha.

Repito o reparo que já fiz: um professor que não dê a devida importância a estes versos, provavelmente estará a enganar os seus alunos.
Vejam-se agora estas palavras dirigidas aos leitores, que rematam o canto:

Impossibilidades não façais,
Que quem quis, sempre pôde; e numerados
Sereis entre os heróis esclarecidos
E nesta Ilha de Vénus recebidos.

O encontro amoroso foi apenas um modo figurado de falar, e o poeta desclassifica com uma só vassourada todos os intérpretes boçais destas cenas. Todos sem excepção.
Antes de começar esta narrativa, escrevera o épico a respeito dos nautas:

O prazer de chegar à pátria cara,
A seus penates caros e parentes,
Para contar a peregrina e rara
Navegação, os vários céus e gentes;
Vir a lograr o prémio que ganhara,
Por tão longos trabalhos e acidentes:
Cada um tem por gosto tão perfeito
Que o coração para ele é vaso estreito.

Isto é que estará figurado neste encontro, e será uma coisa tão pessoal como o amor.


3 - O banquete

Ainda no canto IX, já fala o poeta dum palácio que existe no cimo da ilha: «uma rica fábrica se erguia, / De cristal toda e de ouro puro e fino». Fábrica será construção, edifício. É neste novo espaço de maravilha (semelhante ao do Olimpo e ao do Palácio de Neptuno) que decorre o banquete. E deve ser mais importante que a cena anterior: é um momento de serenidade, de acordo entre as ninfas e os navegantes, que se aceitam mutuamente numa união definitiva, matrimonial; a comida e a bebida são superiores às dos deuses, a baixela é de ouro e diamante, há «subtis e argutos ditos» (certamente ao modo palaciano ou maneirista) – e há música. Mais, parece que há uma pequena orquestra ou banda («músicos instrumentos») e a respectiva solista, a sirena ou sereia. O efeito da música e do canto é soberbo:

Um súbito silêncio enfreia os ventos
E faz ir docemente murmurando
As águas, e nas casas naturais
Adormecer os brutos animais.

Deve estar aqui alguma reminiscência órfica, como aliás noutros passos da produção poética de Camões.
E que canta a sereia?
Em canto pretensamente profético (no nosso dia-a-dia não lidamos com profetas…), ela anuncia os feitos futuros de vários portugueses, nomeadamente dos vice-reis do Oriente. Neste devaneio pseudo-profético, os nautas acedem a uma certa pseudo-omnisciência divinizante, que se reforçará à frente.
Eu conheço pouco da história do Império Português do Oriente (de que a sereia fala). Por isso o que vou dizer não vem inteiramente a propósito. São só algumas palavras sobre os dois nomes cimeiros da nossa gesta oriental, D. Afonso de Albuquerque e D. João de Castro.
D. Afonso de Albuquerque foi quem tomou Goa e Malaca, pilares do domínio marítimo no Índico e parte do Pacífico. Era descendente em sexto grau do fundador do Mosteiro de Santa Clara de Vila do Conde.
Convém saber uma coisa que não vem no texto, nem podia vir, que houve um bispo natural de Vila do Conde, que foi genealogista e geógrafo, D. João Ribeiro Gaio de seu nome, mais ou menos contemporâneo de Camões, que escreveu sobre essas paragens orientais das proximidades de Malaca. Um homem da nossa vizinhança, portanto, que também foi de lá.
D. João de Castro é um herói do tempo da juventude de Camões (morre em 1548) e estou em crer que as suas inauditas façanhas terão estimulado o poeta (quem sabe se decisivamente) a escrever Os Lusíadas. Este guerreiro, político e cientista teve, na hora da morte, a assistência de Fr. João de Vila do Conde (que com ele lidou em vida).
O contributo científico deste vice-rei relaciona-se com a derivação da agulha magnética. Mas como não foi publicado, mais tarde houve um estrangeiro quer o repetiu e ficou com os louros duma prioridade imerecida.

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