domingo, 9 de agosto de 2009

SOBRE "OS LUSÍADAS"

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OS PALÁCIOS D'"OS LUSÍADAS"


0 - Introdução

Que palácios é que Camões conheceria? Como poeta frequentador da corte, conheceria o palácio da Ribeira, o de Sintra, o de Almeirim, o de Évora... E conhecia palácios orientais.
Os palácios portugueses podiam ser de cidade, integrados na malha urbana, intra muros, ou do campo, isolados, extra muros. Características eram as suas torres pontiagudas, certamente de imitação estrangeira. Mas não vamos agora alongar-nos sobre o assunto.
Aos palácios, n'Os Lusíadas, chama o poeta paços, ainda à maneira antiga, que era a sua. De modo explícito, menciona seis: os «nobres paços» do rei de Melinde (c. II, est. 91), os «paços sublimados» de Afonso IV, pai da «fermosíssima Maria» (c. III, est. 102), os «paços de Neptuno» (c. VII, est. 14), os «paços» da corte londrina onde decorre o combate dos Doze de Inglaterra, os «régios apousentos» do Samorim (noutra ocasião mencionados como «régios paços») (c. VII, est. 14), os «cristalinos paços singulares» que Vénus prepara na Ilha dos Amores (c. IX, est. 41) e que depois vão ser descritos como «paços radiantes / E de metais ornados reluzentes» (c. X, est. 2).
Mas há mais. A «casa etérea do Olimpo omnipotente» (c. I est. 42) onde decorre o consílio dos Deuses e que no discurso de Júpiter é chamada «luzente, / estelífero Pólo e claro Assento» não será palácio? E como não falar de palácio – nunca referido sequer como casa – a respeito do lugar onde se encontra o «poderoso Rei, cujo alto Império / o Sol, logo em nascendo, vê primeiro, / vê-o também no meio do Hemisfério, / e quando dece o deixa derradeiro» (c. I, est. 8), isto é, da residência de D. Sebastião a quem o épico vai apresentar o seu canto?


1 - A «casa etérea do Olimpo omnipotente»

A «casa etérea do Olimpo omnipotente» ou «luzente, / estelífero Pólo e claro assento» deverá ser como que o palácio original, o pai de todos os palácios. Ao chamar-lhe etéreo, o poeta localiza-o na quinta-essência, no éter. Mas não se alonga a descrevê-lo.
Antes de lá chegarem, já os Deuses se encontram num mundo de maravilha: pisam «o cristalino Céu fermoso» e «vêm pela Via Láctea juntamente». Mas é quando se reúnem que essa «casa etérea» brilha:

Estava o Padre ali, sublime e dino,
Que vibra os feros raios de Vulcano,
Num assento de estrelas cristalino,
Com gesto alto, severo e soberano;
Do rosto respirava um ar divino,
Que divino tornara um corpo humano;
Com ua coroa e ceptro rutilante,
De outra pedra mais clara que diamante.

Júpiter apresenta-se de facto como uma figura imponente, divina, no seu «assento de estrelas cristalino». Quanto aos deuses convocados, ocupam «luzentes assentos, marchetados / de ouro e de perlas»:

Em luzentes assentos, marchetados
De ouro e de perlas, mais abaixo estavam
Os outros Deuses, todos assentados
Como a Razão e a Ordem concertavam.

É um espaço refulgente, verdadeiramente olímpico.


2 - Os «paços de Neptuno»

Não fazendo caso de outros paços sobre que o épico pouquíssima informação dá, passemos já para os de Neptuno.
O mundo onde se situa este palácio submarino também é um mundo fantástico. Há lá «cidades» - que relação terão com a Atlântida, onde mandava Neptuno...?; as areias são «de prata fina»; há «torres altas» «da transparente massa cristalina»: tudo parece cristal e diamante:

No mais interno fundo das profundas
Cavernas altas, onde o mar se esconde,
Lá donde as ondas saem furibundas
Quando às iras do vento o mar responde,
Neptuno mora e moram as jucundas
Nereidas e outros Deuses do mar, onde
As águas campo deixam às cidades
Que habitam estas húmidas Deidades.

Descobre o fundo nunca descoberto
As areias ali de prata fina;
Torres altas se vêem, no campo aberto,
Da transparente massa cristalina;
Quanto se chegam mais os olhos perto
Tanto menos a vista determina
Se é cristal o que vê, se diamante,
Que assi se mostra claro e radiante.

Repare-se nas esculturas das «portas d'ouro fino» que dão acesso à cidade, onde se evocam o caos, os quatro elementos, a Guerra dos Gigantes «e a primeira / de Minerva pacífica ouliveira»:

As portas d' ouro fino, e marchetadas
Do rico aljôfar que nas conchas nace,
De escultura fermosa estão lavradas,
Na qual do irado Baco a vista pace;
E vê primeiro, em cores variadas,
Do velho Caos a tão confusa face;
Vêm-se os quatro Elementos trasladados,
Em diversos ofícios ocupados.

Ali, sublime, o Fogo estava em cima,
Que em nenhua matéria se sustinha;
Daqui as cousas vivas sempre anima,
Despois que Prometeu furtado o tinha.
Logo após ele, leve se sublima
O invisíbil Ar, que mais asinha
Tomou lugar e, nem por quente ou frio,
Algum deixa no mundo estar vazio.

Estava a Terra em montes, revestida
De verdes ervas e árvores floridas,
Dando pasto diverso e dando vida
Às alimárias nela produzidas.
A clara forma ali estava esculpida
Das Águas, entre a terra desparzidas,
De pescados criando vários modos,
Com seu humor mantendo os corpos todos.

Noutra parte, estava esculpida a guerra.
Que tiveram os Deuses cos Gigantes;
Está Tifeu debaixo da alta serra
De Etna, que as flamas lança crepitantes.
Esculpido se vê, ferindo a Terra,
Neptuno, quando as gentes, ignorantes,
Dele o cavalo houveram, e a primeira
De Minerva pacífica ouliveira.

Veja-se agora o ajuntamento divino, já «na grande sala, nobre e divinal» do palácio de Neptuno:

Já finalmente todos assentados
Na grande sala, nobre e divinal,
As Deusas em riquíssimos estrados,
Os Deuses em cadeiras de cristal,
Foram todos do Padre agasalhados,
Que co Tebano tinha assento igual;
De fumos enche a casa a rica massa
Que no mar nace e Arábia em cheiro passa.

Decorre então o consílio, que também há-de degenerar em tumulto, como o do Olimpo, e onde Baco será bem sucedido, conseguindo aliados activos contra os Portugueses.
3 - Os «cristalinos paços singulares»

Dos paços de Neptuno vamos de imediato para «cristalinos paços singulares» que Vénus preparou na sua «alegre e namorada» (c. X, est. 143) «ínsula divina» (c. IX, est. 21) – que nunca é mencionada como Ilha dos Amores; Tétis, «a quem se humilha / todo o coro das Ninfas e obedece» (c. IX, est. 85), é naturalmente deusa ligada aos mares – e em concreto ao Atlântico, onde certamente possui o «Atlântico tesouro» donde há-de vir a baixela para o festim que vai dar.
Quis a Citereia que:

Ali, com mil refrescos e manjares,
Com vinhos odoríferos e rosas,
Em cristalinos paços singulares,
Fermosos leitos, e elas mais fermosas;
Enfim, com mil deleites não vulgares,
Os esperem as Ninfas amorosas,
D' amor feridas, pera lhe entregarem
Quanto delas os olhos cobiçarem.

É nesses «paços radiantes / E de metais ornados reluzentes» que vai ter lugar o finíssimo festim de Tétis, com óptimas baixelas, fantásticas iguarias e vinhos, conversas argutas, acompanhamento musical:

Quando as fermosas Ninfas, cos amantes
Pela mão, já conformes e contentes,
Subiam pera os paços radiantes
E de metais ornados reluzentes,
Mandados da Rainha, que abundantes
Mesas d' altos manjares excelentes
Lhe tinha aparelhados, que a fraqueza
Restaurem da cansada natureza.

Ali, em cadeiras ricas, cristalinas,
Se assentam dous e dous, amante e dama;
Noutras, à cabeceira, d' ouro finas,
Está co a bela Deusa o claro Gama.
De iguarias suaves e divinas,
A quem não chega a Egípcia antiga fama,
Se acumulam os pratos de fulvo ouro,
Trazidos lá do Atlântico tesouro.

Os vinhos odoríferos, que acima
Estão não só do Itálico Falerno
Mas da Ambrósia, que Jove tanto estima
Com todo o ajuntamento sempiterno,
Nos vasos, onde em vão trabalha a lima,
Crespas escumas erguem, que no interno
Coração movem súbita alegria,
Saltando co a mistura d' água fria.

Mil práticas alegres se tocavam;
Risos doces, sutis e argutos ditos,
Que entre um e outro manjar se alevantavam,
Despertando os alegres apetitos;
Músicos instrumentos não faltavam
(Quais, no profundo Reino, os nus espritos
Fizeram descansar da eterna pena)
Cua voz dua angélica Sirena.

Compensa ir daqui dar uma olhadela à Máquina do Mundo, que continua este espaço «divino» de maravilha, pois parece que os Deuses marinhos, que às portas da sua cidade já tinham representações que lembravam altos temas do saber humano e divino, são mais dados a coisas de cultura que os olímpicos. Vejam-se as estrofes iniciais, onde aparecem esmeraldas e rubis e um globo de luz e transparência representa o Universo:

Não andam muito que no erguido cume
Se acharam, onde um campo se esmaltava
De esmeraldas, rubis, tais que presume
A vista que divino chão pisava.
Aqui um globo vêm no ar, que o lume
Claríssimo por ele penetrava,
De modo que o seu centro está evidente,
Como a sua superfície, claramente.

Qual a matéria seja não se enxerga,
Mas enxerga-se bem que está composto
De vários orbes, que a Divina verga
Compôs, e um centro a todos só tem posto.
Volvendo, ora se abaxe, agora se erga,
Nunca s' ergue ou se abaxa, e um mesmo rosto
Por toda a parte tem; e em toda a parte
Começa e acaba, enfim, por divina arte,

Uniforme, perfeito, em si sustido,
Qual, enfim, o Arquetipo que o criou.
Vendo o Gama este globo, comovido
De espanto e de desejo ali ficou.
Diz-lhe a Deusa: – «O transunto, reduzido
Em pequeno volume, aqui te dou
Do Mundo aos olhos teus, pera que vejas
Por onde vás e irás e o que desejas.

Vês aqui a grande máquina do Mundo,
Etérea e elemental, que fabricada
Assi foi do Saber, alto e profundo,
Que é sem princípio e meta limitada.
Quem cerca em derredor este rotundo
Globo e sua superfícia tão limada,
É Deus: mas o que é Deus, ninguém o entende,
Que a tanto o engenho humano não se estende.

A Máquina do Mundo é o espectáculo único, divino, presenciado por "olhos corporais".
Nas palavras de A. J. Saraiva, "é um dos supremos sucessos de Camões", "as esferas são transparentes, luminosas, vêem-se todas ao mesmo tempo com igual nitidez; movem-se, e o movimento é perceptível, embora a superfície visível seja sempre igual. Conseguir traduzir isto por meio da "pintura que fala" é atingir um dos cumes da literatura universal."
Esta «pintura que fala» (c. VIII, est. 41), ou descrição, opõe-se à «muda poesia» ou pintura propriamente dita, a que o poeta se refere quando escreve no canto VII est. 76:

...................................mas o intento
Mostrava sempre ter nos singulares
Feitos dos homens que, em retrato breve,
A muda poesia ali descreve.


4 - Os «régios paços» do Samorim

Agora vamos ter um palácio verdadeiro, não de fantasia. Camões dá-se conta da sua superioridade relativamente ao que havia na Europa:

Já chegam perto, e não [com] passos lentos,
Dos jardins odoríferos fermosos,
Que em si escondem os régios apousentos,
Altos de torres não, mas sumptuosos;
Edificam-se os nobres seus assentos
Por entre os arvoredos deleitosos:
Assi vivem os Reis daquela gente,
No campo e na cidade juntamente.

O palácio esconde-se numa enorme cerca, ao modo oriental. Por isso, como se diz nos dois versos finais, o Samorim atinge um anseio bem nosso contemporâneo, o de viver «no campo e na cidade juntamente», o de ter a liberdade, a comunhão com a natureza, a pureza de ares do campo, mais as comodidades urbanas.
Atente-se na informação sobre a inexistência das torres, ao contrário do que se passava nas cidades submarinas e na Europa.
Ao modo do que sucedera com as portas das cidades do fundo do oceano, aqui as portas da cerca ostentam painéis historiados que contam a história da Índia na sua ligação ao mundo ocidental pelas intervenções sucessivas de Baco, Semíramis e Alexandre Magno:

Pelos portais da cerca a sutileza
Se enxerga da Dedálea facultade,
Em figuras mostrando, por nobreza,
Da Índia a mais remota antiguidade.
Afiguradas vão com tal viveza
As histórias daquela antiga idade,
Que quem delas tiver notícia inteira,
Pela sombra conhece a verdadeira.

Estava um grande exército, que pisa
A terra Oriental que o Idaspe lava;
Rege-o um capitão de fronte lisa,
Que com frondentes tirsos pelejava
(Por ele edificada estava Nisa
Nas ribeiras do rio que manava),
Tão próprio que, se ali estiver Semele,
Dirá, por certo, que é seu filho aquele.

Mais avante, bebendo, seca o rio
Mui grande multidão da Assíria gente,
Sujeita a feminino senhorio
De ua tão bela como incontinente.
Ali tem, junto ao lado nunca frio,
Esculpido o feroz ginete ardente
Com quem teria o filho competência.
Amor nefando, bruta incontinência!

Daqui mais apartadas, tremulavam
As bandeiras de Grécia gloriosas
(Terceira Monarquia), e sojugavam
Até as águas Gangéticas undosas.
Dum capitão mancebo se guiavam,
De palmas rodeado valerosas,
Que já não de Filipo, mas, sem falta,
De progénie de Júpiter se exalta.


5 - «Inclinai por um pouco a majestade»

Se para o rei de Melinde há «nobres paços», para o Samorim «régios apousentos», que haverá para D. Sebastião, a quem o poeta trata tão majestaticamente? Preste-se atenção a estes versos:

Inclinai por um pouco a majestade
Que nesse tenro gesto vos contemplo,
Que já se mostra qual na inteira idade,
Quando subindo ireis ao eterno templo;
Os olhos da real benignidade
Ponde no chão: ...

Como Júpiter, como Neptuno ou Baco, o rei ocupa um lugar superior; é de lá, de um trono, que ele há-de estar atento à oferta do poeta. Mas estará ele só? Não estará antes num palácio com a sua corte? Ou estará numa espécie de anfiteatro, tendo a seu lado as Ninfas do Tejo, a quem antes o poeta se dirigira, e o Povo português o rei que governa e o poema exalta?

O Camões «humilde, baixo e rudo» é um sonhador. Com muita luz, com cristais e diamantes, ouro, pedrarias, riqueza sem limites, fabrica «na fantasia / fantásticas pinturas de alegria» (Canção X), como as dos palácios sobre que reflectimos.

sábado, 1 de agosto de 2009

DO CONFUSO MUNDO À ILHA DOS AMORES

0 – Introdução

Falar sobre Os Lusíadas não tarefa fácil. Mas o que pretendo fazer é só convidar quem me veio ouvir para uma reflexão sobre o sentido da Ilha dos Amores. Não está em causa dizer grandes novidades nem grandes verdades, mas só pensar um pouco sobre esta narrativa, num ambiente diferente do da aula. Aliás talvez ele seja um dos trechos mais difíceis da epopeia.
A Ilha dos Amores alonga-se por 220 estrofes, o que corresponde a quase dois cantos (se considerarmos o tamanho médio dos cantos d’Os Lusíadas).
E é uma narrativa predominantemente não histórica, de ficção. E porque é ficção ecoam nela muitos textos líricos de Camões, que ajudam a interpretá-la. Eu vou considerar sobretudo estes dois fragmentos:

Verdade, amor, razão, merecimento
qualquer alma farão segura e forte;
porém, fortuna, caso, tempo e sorte
têm do confuso mundo o regimento.

(Do soneto Verdade, amor, razão, merecimento)

Mas a fraqueza humana, quando lança
os olhos no que corre, e não alcança
senão memória dos passados anos,
as águas que então bebo, e o pão que como
lágrimas tristes são, que eu nunca domo
senão com fabricar na fantasia
fantásticas pinturas de alegria.

(Da canção Vinde cá, meu tão certo secretário)

Na quadra do soneto, o poeta considera o confuso mundo, o mundo real (onde os nossos méritos pessoais pouco contam, pois tudo depende do acaso, do tempo e da sorte) e um mundo ideal (onde a verdade, o amor, a razão e o mérito dariam segurança à nossa vida).
No segundo fragmento, confessa ele que, para suportar as dores sem fim com que a vida continuamente o atormenta, fabrica na fantasia fantásticas pinturas de alegria.
Nos dois fragmentos são afirmados um mundo real, tormentoso, confuso, e um mundo idealizado de felicidade.
Nesta perspectiva, a Ilha dos Amores seria, globalmente, uma fantástica pintura de alegria oposta à realidade do confuso mundo.

Vejamos então o plano da narrativa:


Plano da Ilha dos Amores

1. Preparativos (por parte de Vénus)
2. A écloga:
a. O locus amoenus
b. O idílio (encontro amoroso)
c. O caso de Leonardo
d. A interpretação alegórica
3. O banquete:
a. O banquete
b. O canto profético
4. A lição pós-prandial:
a. A máquina do mundo
b. O anúncio profético
c. O regresso à Pátria na companhia das ninfas

Qualquer uma destas quatro partes da narrativa é importante e não deve ser isolada do contexto. A razão dessa importância varia para cada caso.


1 – Os preparativos

Aparentemente esta parte dos preparativos é a mais fácil e a menos problemática: Vénus, que sempre esteve com os navegantes desde o princípio da epopeia, resolve presenteá-los com uma ilha de delícias e põe tudo em marcha para conseguir este ojectivo.
Eu vou-me fixar apenas numa das muitas estrofes dos preparativos, que vem particularmente ao encontro da ideia que orienta as minhas reflexões. É a 28.ª do c. IX, que descreve as altas e inesperadas preocupações morais que movem Vénus. Insisto nas as altas e inesperadas preocupações morais que a movem. O narrador está a falar na terceira pessoa, mas a focalização é interna, revela o pensamento da deusa:

Vê que aqueles que devem à pobreza
Amor divino, e ao povo caridade
Amam somente mandos e riqueza,
Simulando justiça e integridade;
Da feia tirania e de aspereza
Fazem direito e vã severidade;
Leis em favor do Rei se estabelecem,
As em favor do povo só perecem.

Ela refere-se primeiro às ordens religiosas e depois aos políticos (talvez anacronicamente, pois se calhar está a falar do tempo de Camões e não do tempo do Gama). Mas parece o cardeal a falar; e é para corrigir situações destas que prepara a Ilha divina…
Quem diria que estas eram as suas preocupações! E os meios de que vai lançar mão serão os mais aptos para atingir tais fins?
É indispensável que quem orienta a leitura do episódio tenha em atenção estes objectivos. Caso contrário, um dia poderá ser apodado de aldrabão.

2 - A écloga

Camões escreveu várias éclogas. A écloga canta normalmente a vida dos pastores, mas canta sobretudo os seus amores. O espaço da écloga é o campo, não um campo qualquer, mas um locus amoenus, um campo de beleza ideal, perfeitamente ecológico. O carácter não realista desta composição convida ao sonho, à ficção. Momentos de écloga afloram frequentemente quer em muitas composições poéticas que não são propriamente éclogas quer mesmo n’Os Lusíadas (é o caso de muitos sonetos e redondilhas que têm momentos pastoris, na lírica, e o episódio da Linda Inês, o do Adamastor…). A Ínsula divina, onde os nautas se vão deparar com as Ninfas, teria de ser um espaço idealizado de écloga, um belíssimo locus amoenus, cheio de verdura, de águas cantantes e cristalinas e de sol:

Três formosos outeiros se mostravam,
Erguidos com soberba graciosa,
Que de gramíneo esmalte se adornavam,
Na formosa ilha, alegre e deleitosa.
Claras fontes e límpidas manavam
Do cume, que a verdura tem viçosa;
Por entre pedras alvas se deriva
A sonorosa linfa fugitiva.

Num vale ameno, que os outeiros fende,
Vinham as claras águas ajuntar-se,
Onde uma mesa fazem, que se estende
Tão bela quanto pode imaginar-se.
Arvoredo gentil sobre ela pende,
Como que pronto está para afeitar-se,
Vendo-se no cristal resplandecente,
Que em si o está pintando propriamente.

Reparar que estas estrofes são dum entendimento excepcionalmente fácil, bem ao contrário das que se lhes seguem, muito dependentes das Metamorfoses de Ovídio, livro de cabeceira de Camões. De reparar que isto não descreve toda a ilha, pois que lá existe um maravilhoso palácio…
É neste espaço, muito longe do confuso mundo, que o poeta situa a parte da fantástica pintura de alegria que é o encontro amoroso dos nautas com as ninfas, a que chamei idílio.
Para o meu propósito, basta-me tecer algumas considerações sobre duas estrofes desse texto, de quando Leonardo persegue a ninfa Efire, que simula não lhe querer corresponder:

Todas de correr cansam, ninfa pura,
Rendendo-se à vontade do inimigo;
Tu só de mim só foges na espessura?
Quem te disse que eu era o que te sigo?
Se to tem dito já aquela ventura
Que em toda a parte sempre anda comigo,
Oh, não na creias, porque eu, quando a cria,
Mil vezes cada hora me mentia.

Não canses, que me cansas! E se queres
Fugir-me, por que não possa tocar-te,
Minha ventura é tal que, ainda que esperes,
Ela fará que não possa alcançar-te.
Espera; quero ver, se tu quiseres,
Que sutil modo busca de escapar-te;
E notarás, no fim deste sucesso,
‘Tra la spiga e la man qual muro è messo’.

O texto é muito bonito, cheio de subtilezas maneiristas e conclui-se com uma citação de Petrarca.
Sabe-se que Leonardo representa Camões. Se na lírica o amor é para o poeta sempre ocasião para lamento, neste episódio de ficção, embora se faça claro eco desses lamentos, ele está fora do confuso mundo e por isso vai acabar bem sucedido, em alegria.
Não se justifica parar mais com o idílio, até porque é preciso distribuir o tempo por toda a narrativa. O que é indispensável é notar a interpretação alegórica que lhe dá poeta e que os planos de Vénus já continham. Ele alonga-se nessa interpretação. Veja-se por exemplo esta estrofe:

Que as Ninfas do Oceano, tão formosas,
Tétis e a Ilha angélica pintada,
Outra coisa não é que as deleitosas
Honras que a vida fazem sublimada.
Aquelas preminências gloriosas,
Os triunfos, a fronte coroada
De palma e louro, a glória e maravilha,
Estes são os deleites desta ilha.

Repito o reparo que já fiz: um professor que não dê a devida importância a estes versos, provavelmente estará a enganar os seus alunos.
Vejam-se agora estas palavras dirigidas aos leitores, que rematam o canto:

Impossibilidades não façais,
Que quem quis, sempre pôde; e numerados
Sereis entre os heróis esclarecidos
E nesta Ilha de Vénus recebidos.

O encontro amoroso foi apenas um modo figurado de falar, e o poeta desclassifica com uma só vassourada todos os intérpretes boçais destas cenas. Todos sem excepção.
Antes de começar esta narrativa, escrevera o épico a respeito dos nautas:

O prazer de chegar à pátria cara,
A seus penates caros e parentes,
Para contar a peregrina e rara
Navegação, os vários céus e gentes;
Vir a lograr o prémio que ganhara,
Por tão longos trabalhos e acidentes:
Cada um tem por gosto tão perfeito
Que o coração para ele é vaso estreito.

Isto é que estará figurado neste encontro, e será uma coisa tão pessoal como o amor.


3 - O banquete

Ainda no canto IX, já fala o poeta dum palácio que existe no cimo da ilha: «uma rica fábrica se erguia, / De cristal toda e de ouro puro e fino». Fábrica será construção, edifício. É neste novo espaço de maravilha (semelhante ao do Olimpo e ao do Palácio de Neptuno) que decorre o banquete. E deve ser mais importante que a cena anterior: é um momento de serenidade, de acordo entre as ninfas e os navegantes, que se aceitam mutuamente numa união definitiva, matrimonial; a comida e a bebida são superiores às dos deuses, a baixela é de ouro e diamante, há «subtis e argutos ditos» (certamente ao modo palaciano ou maneirista) – e há música. Mais, parece que há uma pequena orquestra ou banda («músicos instrumentos») e a respectiva solista, a sirena ou sereia. O efeito da música e do canto é soberbo:

Um súbito silêncio enfreia os ventos
E faz ir docemente murmurando
As águas, e nas casas naturais
Adormecer os brutos animais.

Deve estar aqui alguma reminiscência órfica, como aliás noutros passos da produção poética de Camões.
E que canta a sereia?
Em canto pretensamente profético (no nosso dia-a-dia não lidamos com profetas…), ela anuncia os feitos futuros de vários portugueses, nomeadamente dos vice-reis do Oriente. Neste devaneio pseudo-profético, os nautas acedem a uma certa pseudo-omnisciência divinizante, que se reforçará à frente.
Eu conheço pouco da história do Império Português do Oriente (de que a sereia fala). Por isso o que vou dizer não vem inteiramente a propósito. São só algumas palavras sobre os dois nomes cimeiros da nossa gesta oriental, D. Afonso de Albuquerque e D. João de Castro.
D. Afonso de Albuquerque foi quem tomou Goa e Malaca, pilares do domínio marítimo no Índico e parte do Pacífico. Era descendente em sexto grau do fundador do Mosteiro de Santa Clara de Vila do Conde.
Convém saber uma coisa que não vem no texto, nem podia vir, que houve um bispo natural de Vila do Conde, que foi genealogista e geógrafo, D. João Ribeiro Gaio de seu nome, mais ou menos contemporâneo de Camões, que escreveu sobre essas paragens orientais das proximidades de Malaca. Um homem da nossa vizinhança, portanto, que também foi de lá.
D. João de Castro é um herói do tempo da juventude de Camões (morre em 1548) e estou em crer que as suas inauditas façanhas terão estimulado o poeta (quem sabe se decisivamente) a escrever Os Lusíadas. Este guerreiro, político e cientista teve, na hora da morte, a assistência de Fr. João de Vila do Conde (que com ele lidou em vida).
O contributo científico deste vice-rei relaciona-se com a derivação da agulha magnética. Mas como não foi publicado, mais tarde houve um estrangeiro quer o repetiu e ficou com os louros duma prioridade imerecida.

4 - A lição pós-prandial

Prândio, em latim, significa o jantar; mas o adjectivo pós-prandial tem algum uso em português. E é após o jantar, quando acabam o banquete e a música, que os navegantes vão contemplar uma nova maravilha. Falo também de lição por causa da mensagem contida nestes versos:

Faz-te mercê, barão, a Sapiência
Suprema de, cos olhos corporais,
Veres o que não pode a vã ciência
Dos errados e míseros mortais.

A professora vai ser Tétis, que fala ao modo duma profetisa antiga ou duma mística moderna a quem Deus revelasse as suas vontades..
Navegantes e ninfas sobem então a uma colina, «por um mato / Árduo, difícil, duro a humano trato», que é a imagem do caminho do saber. Temos certamente agora o momento supremo do poema, o da Máquina (ou transunto) do Mundo, que é uma original miniatura do universo ainda no modelo geocêntrico (a teoria heliocêntrica de Copérnico – 1473-1543 – ainda estava muito longe de ser aceite; ele fora só teórico):

Não andam muito que no erguido cume
Se acharam, onde um campo se esmaltava
De esmeraldas, rubis, tais que presume
A vista que divino chão pisava.
Aqui um globo vêem no ar, que o lume
Claríssimo por ele penetrava,
De modo que o seu centro está evidente,
Como a sua superfície, claramente.

Qual a matéria seja não se enxerga,
Mas enxerga-se bem que está composto
De vários orbes, que a Divina verga
Compôs, e um centro a todos só tem posto.
Volvendo, ora se abaixe, agora se erga,
Nunca se ergue ou se abaixa, e um mesmo rosto
Por toda a parte tem; e em toda a parte
Começa e acaba, enfim, por divina arte,

Uniforme, perfeito, em si sustido,
Qual, enfim, o Arquétipo que o criou.
Vendo o Gama este globo, comovido
De espanto e de desejo ali ficou.
Diz-lhe a Deusa: – «O transunto, reduzido
Em pequeno volume, aqui te dou
Do Mundo aos olhos teus, para que vejas
Por onde vás e irás e o que desejas.

Vês aqui a grande Máquina do Mundo,
Etérea e elemental, que fabricada
Assi foi do Saber, alto e profundo,
Que é sem princípio e meta limitada.
Quem cerca em derredor este rotundo
Globo e sua superfície tão limada
É Deus: mas o que é Deus, ninguém o entende,
Que a tanto o engenho humano não se estende».

Se a alguém parecesse que o idílio amoroso afastava irremediavelmente do poema o seu sentido católico, repare que ele é aqui reafirmado, como aliás em muito outros lugares[1].
Camões não acerta sempre: faz pouco sentido colocar Vénus lá trás e agora Tétis nesta postura tão católica; mas foi assim que reiteradamente escreveu.
É indispensável compreender o sentido da totalidade da narrativa da Ilha dos Amores para nelas integrar tão harmoniosamente quanto possível as famosas estrofes da segunda metade do canto IX. Quem não conseguir isso tenha pelo menos a certeza de que pouco percebeu do episódio, mesmo dessas estrofes.
Reparemos ainda nalguns versos da presente lição. Na estrofe 82, ensina Tétis:

…………….. eu, Saturno e Jano,
Júpiter, Juno, fomos fabulosos,
Fingidos de mortal e cego engano.
Só para fazer versos deleitosos
Servimos; e, se mais o trato humano
Nos pode dar, é só que o nome nosso
Nestas estrelas pôs o engenho vosso.

Procede-se aqui à anulação dos deuses greco-romanos, o que já o poeta fizera no final do canto IX.
Isto merece-me um aparte. Esta anulação lembra-me um texto de S. Martinho de Dume (Dume é junto a Braga e S. Martinho viveu nos séculos V e VI) em que ele ensina também que os deuses são nada, ou menos do que nada, e depois insurge-se contra o hábito de os colocar nos nomes dos dias da semana. É curioso que só em português é que eles foram eliminados…
Passando por cima de novo momento proléptico, agora pela palavra de Tétis, e avançando muito, para o fim do episódio, não queria deixar de lembrar que é aqui que se anuncia o naufrágio em que Camões salva o manuscrito d’Os Lusíadas. Mas vejamos mais três versos, atribuídos ao narrador principal do poema, pois os navegantes estão já no mar:

Levam a companhia desejada
Das Ninfas, que hão-de ter eternamente,
Por mais tempo que o Sol o mundo aquente.

Se eles trouxeram com eles as Ninfas, nós poderemos ser parentes delas… Houve dois nautas vila-condenses na armada do Gama.
O que isto faz é confirmar que a idealização de alegria, onde parecia que a verdade, o amor, a razão e o mérito se tinham conjugado para exaltar os autores dum grande feito, são qualquer coisa de muito íntimo e pessoal. Ninguém os tira aos seus autores. O resto é aparato alegórico.
O mundo real é o da confusão, e nele não conta muitas vezes o mérito nem a verdade, mas a sorte, o aparente acaso.
A cada um de nós também apeteceria dizer:

Mas a fraqueza humana, quando lançaos olhos no que corre e não alcançasenão memória dos passados anos,as águas que então bebo e o pão que comolágrimas tristes são que eu nunca domosenão com fabricar na fantasia fantásticas pinturas de alegria.

Na Ilha dos Amores há um aspecto irónico. Camões coloca-a no momento da viagem em que os nautas passaram os momentos de maior horror, quando, no regresso, atravessavam o Índico. Pouco faltou para que morressem todos.
Se bem se repara, Camões usou, digamos, vários ingredientes para construir esta fantástica pintura de alegria: a fantasia e a alegoria, por momentos o erotismo, a mitologia, a história, a ciência do tempo e o cristianismo. A apreciação global do episódio não pode prescindir de nenhum.


ESEQ, 23/04/08

[1] Não se justificaria alguma aproximação entre o que chamei idílio e o nu do Juízo Final de Miguel Ângelo? Este mural foi aberto ao público em 1536.