sábado, 1 de agosto de 2009

4 - A lição pós-prandial

Prândio, em latim, significa o jantar; mas o adjectivo pós-prandial tem algum uso em português. E é após o jantar, quando acabam o banquete e a música, que os navegantes vão contemplar uma nova maravilha. Falo também de lição por causa da mensagem contida nestes versos:

Faz-te mercê, barão, a Sapiência
Suprema de, cos olhos corporais,
Veres o que não pode a vã ciência
Dos errados e míseros mortais.

A professora vai ser Tétis, que fala ao modo duma profetisa antiga ou duma mística moderna a quem Deus revelasse as suas vontades..
Navegantes e ninfas sobem então a uma colina, «por um mato / Árduo, difícil, duro a humano trato», que é a imagem do caminho do saber. Temos certamente agora o momento supremo do poema, o da Máquina (ou transunto) do Mundo, que é uma original miniatura do universo ainda no modelo geocêntrico (a teoria heliocêntrica de Copérnico – 1473-1543 – ainda estava muito longe de ser aceite; ele fora só teórico):

Não andam muito que no erguido cume
Se acharam, onde um campo se esmaltava
De esmeraldas, rubis, tais que presume
A vista que divino chão pisava.
Aqui um globo vêem no ar, que o lume
Claríssimo por ele penetrava,
De modo que o seu centro está evidente,
Como a sua superfície, claramente.

Qual a matéria seja não se enxerga,
Mas enxerga-se bem que está composto
De vários orbes, que a Divina verga
Compôs, e um centro a todos só tem posto.
Volvendo, ora se abaixe, agora se erga,
Nunca se ergue ou se abaixa, e um mesmo rosto
Por toda a parte tem; e em toda a parte
Começa e acaba, enfim, por divina arte,

Uniforme, perfeito, em si sustido,
Qual, enfim, o Arquétipo que o criou.
Vendo o Gama este globo, comovido
De espanto e de desejo ali ficou.
Diz-lhe a Deusa: – «O transunto, reduzido
Em pequeno volume, aqui te dou
Do Mundo aos olhos teus, para que vejas
Por onde vás e irás e o que desejas.

Vês aqui a grande Máquina do Mundo,
Etérea e elemental, que fabricada
Assi foi do Saber, alto e profundo,
Que é sem princípio e meta limitada.
Quem cerca em derredor este rotundo
Globo e sua superfície tão limada
É Deus: mas o que é Deus, ninguém o entende,
Que a tanto o engenho humano não se estende».

Se a alguém parecesse que o idílio amoroso afastava irremediavelmente do poema o seu sentido católico, repare que ele é aqui reafirmado, como aliás em muito outros lugares[1].
Camões não acerta sempre: faz pouco sentido colocar Vénus lá trás e agora Tétis nesta postura tão católica; mas foi assim que reiteradamente escreveu.
É indispensável compreender o sentido da totalidade da narrativa da Ilha dos Amores para nelas integrar tão harmoniosamente quanto possível as famosas estrofes da segunda metade do canto IX. Quem não conseguir isso tenha pelo menos a certeza de que pouco percebeu do episódio, mesmo dessas estrofes.
Reparemos ainda nalguns versos da presente lição. Na estrofe 82, ensina Tétis:

…………….. eu, Saturno e Jano,
Júpiter, Juno, fomos fabulosos,
Fingidos de mortal e cego engano.
Só para fazer versos deleitosos
Servimos; e, se mais o trato humano
Nos pode dar, é só que o nome nosso
Nestas estrelas pôs o engenho vosso.

Procede-se aqui à anulação dos deuses greco-romanos, o que já o poeta fizera no final do canto IX.
Isto merece-me um aparte. Esta anulação lembra-me um texto de S. Martinho de Dume (Dume é junto a Braga e S. Martinho viveu nos séculos V e VI) em que ele ensina também que os deuses são nada, ou menos do que nada, e depois insurge-se contra o hábito de os colocar nos nomes dos dias da semana. É curioso que só em português é que eles foram eliminados…
Passando por cima de novo momento proléptico, agora pela palavra de Tétis, e avançando muito, para o fim do episódio, não queria deixar de lembrar que é aqui que se anuncia o naufrágio em que Camões salva o manuscrito d’Os Lusíadas. Mas vejamos mais três versos, atribuídos ao narrador principal do poema, pois os navegantes estão já no mar:

Levam a companhia desejada
Das Ninfas, que hão-de ter eternamente,
Por mais tempo que o Sol o mundo aquente.

Se eles trouxeram com eles as Ninfas, nós poderemos ser parentes delas… Houve dois nautas vila-condenses na armada do Gama.
O que isto faz é confirmar que a idealização de alegria, onde parecia que a verdade, o amor, a razão e o mérito se tinham conjugado para exaltar os autores dum grande feito, são qualquer coisa de muito íntimo e pessoal. Ninguém os tira aos seus autores. O resto é aparato alegórico.
O mundo real é o da confusão, e nele não conta muitas vezes o mérito nem a verdade, mas a sorte, o aparente acaso.
A cada um de nós também apeteceria dizer:

Mas a fraqueza humana, quando lançaos olhos no que corre e não alcançasenão memória dos passados anos,as águas que então bebo e o pão que comolágrimas tristes são que eu nunca domosenão com fabricar na fantasia fantásticas pinturas de alegria.

Na Ilha dos Amores há um aspecto irónico. Camões coloca-a no momento da viagem em que os nautas passaram os momentos de maior horror, quando, no regresso, atravessavam o Índico. Pouco faltou para que morressem todos.
Se bem se repara, Camões usou, digamos, vários ingredientes para construir esta fantástica pintura de alegria: a fantasia e a alegoria, por momentos o erotismo, a mitologia, a história, a ciência do tempo e o cristianismo. A apreciação global do episódio não pode prescindir de nenhum.


ESEQ, 23/04/08

[1] Não se justificaria alguma aproximação entre o que chamei idílio e o nu do Juízo Final de Miguel Ângelo? Este mural foi aberto ao público em 1536.

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