domingo, 9 de agosto de 2009

3 - Os «cristalinos paços singulares»

Dos paços de Neptuno vamos de imediato para «cristalinos paços singulares» que Vénus preparou na sua «alegre e namorada» (c. X, est. 143) «ínsula divina» (c. IX, est. 21) – que nunca é mencionada como Ilha dos Amores; Tétis, «a quem se humilha / todo o coro das Ninfas e obedece» (c. IX, est. 85), é naturalmente deusa ligada aos mares – e em concreto ao Atlântico, onde certamente possui o «Atlântico tesouro» donde há-de vir a baixela para o festim que vai dar.
Quis a Citereia que:

Ali, com mil refrescos e manjares,
Com vinhos odoríferos e rosas,
Em cristalinos paços singulares,
Fermosos leitos, e elas mais fermosas;
Enfim, com mil deleites não vulgares,
Os esperem as Ninfas amorosas,
D' amor feridas, pera lhe entregarem
Quanto delas os olhos cobiçarem.

É nesses «paços radiantes / E de metais ornados reluzentes» que vai ter lugar o finíssimo festim de Tétis, com óptimas baixelas, fantásticas iguarias e vinhos, conversas argutas, acompanhamento musical:

Quando as fermosas Ninfas, cos amantes
Pela mão, já conformes e contentes,
Subiam pera os paços radiantes
E de metais ornados reluzentes,
Mandados da Rainha, que abundantes
Mesas d' altos manjares excelentes
Lhe tinha aparelhados, que a fraqueza
Restaurem da cansada natureza.

Ali, em cadeiras ricas, cristalinas,
Se assentam dous e dous, amante e dama;
Noutras, à cabeceira, d' ouro finas,
Está co a bela Deusa o claro Gama.
De iguarias suaves e divinas,
A quem não chega a Egípcia antiga fama,
Se acumulam os pratos de fulvo ouro,
Trazidos lá do Atlântico tesouro.

Os vinhos odoríferos, que acima
Estão não só do Itálico Falerno
Mas da Ambrósia, que Jove tanto estima
Com todo o ajuntamento sempiterno,
Nos vasos, onde em vão trabalha a lima,
Crespas escumas erguem, que no interno
Coração movem súbita alegria,
Saltando co a mistura d' água fria.

Mil práticas alegres se tocavam;
Risos doces, sutis e argutos ditos,
Que entre um e outro manjar se alevantavam,
Despertando os alegres apetitos;
Músicos instrumentos não faltavam
(Quais, no profundo Reino, os nus espritos
Fizeram descansar da eterna pena)
Cua voz dua angélica Sirena.

Compensa ir daqui dar uma olhadela à Máquina do Mundo, que continua este espaço «divino» de maravilha, pois parece que os Deuses marinhos, que às portas da sua cidade já tinham representações que lembravam altos temas do saber humano e divino, são mais dados a coisas de cultura que os olímpicos. Vejam-se as estrofes iniciais, onde aparecem esmeraldas e rubis e um globo de luz e transparência representa o Universo:

Não andam muito que no erguido cume
Se acharam, onde um campo se esmaltava
De esmeraldas, rubis, tais que presume
A vista que divino chão pisava.
Aqui um globo vêm no ar, que o lume
Claríssimo por ele penetrava,
De modo que o seu centro está evidente,
Como a sua superfície, claramente.

Qual a matéria seja não se enxerga,
Mas enxerga-se bem que está composto
De vários orbes, que a Divina verga
Compôs, e um centro a todos só tem posto.
Volvendo, ora se abaxe, agora se erga,
Nunca s' ergue ou se abaxa, e um mesmo rosto
Por toda a parte tem; e em toda a parte
Começa e acaba, enfim, por divina arte,

Uniforme, perfeito, em si sustido,
Qual, enfim, o Arquetipo que o criou.
Vendo o Gama este globo, comovido
De espanto e de desejo ali ficou.
Diz-lhe a Deusa: – «O transunto, reduzido
Em pequeno volume, aqui te dou
Do Mundo aos olhos teus, pera que vejas
Por onde vás e irás e o que desejas.

Vês aqui a grande máquina do Mundo,
Etérea e elemental, que fabricada
Assi foi do Saber, alto e profundo,
Que é sem princípio e meta limitada.
Quem cerca em derredor este rotundo
Globo e sua superfícia tão limada,
É Deus: mas o que é Deus, ninguém o entende,
Que a tanto o engenho humano não se estende.

A Máquina do Mundo é o espectáculo único, divino, presenciado por "olhos corporais".
Nas palavras de A. J. Saraiva, "é um dos supremos sucessos de Camões", "as esferas são transparentes, luminosas, vêem-se todas ao mesmo tempo com igual nitidez; movem-se, e o movimento é perceptível, embora a superfície visível seja sempre igual. Conseguir traduzir isto por meio da "pintura que fala" é atingir um dos cumes da literatura universal."
Esta «pintura que fala» (c. VIII, est. 41), ou descrição, opõe-se à «muda poesia» ou pintura propriamente dita, a que o poeta se refere quando escreve no canto VII est. 76:

...................................mas o intento
Mostrava sempre ter nos singulares
Feitos dos homens que, em retrato breve,
A muda poesia ali descreve.


4 - Os «régios paços» do Samorim

Agora vamos ter um palácio verdadeiro, não de fantasia. Camões dá-se conta da sua superioridade relativamente ao que havia na Europa:

Já chegam perto, e não [com] passos lentos,
Dos jardins odoríferos fermosos,
Que em si escondem os régios apousentos,
Altos de torres não, mas sumptuosos;
Edificam-se os nobres seus assentos
Por entre os arvoredos deleitosos:
Assi vivem os Reis daquela gente,
No campo e na cidade juntamente.

O palácio esconde-se numa enorme cerca, ao modo oriental. Por isso, como se diz nos dois versos finais, o Samorim atinge um anseio bem nosso contemporâneo, o de viver «no campo e na cidade juntamente», o de ter a liberdade, a comunhão com a natureza, a pureza de ares do campo, mais as comodidades urbanas.
Atente-se na informação sobre a inexistência das torres, ao contrário do que se passava nas cidades submarinas e na Europa.
Ao modo do que sucedera com as portas das cidades do fundo do oceano, aqui as portas da cerca ostentam painéis historiados que contam a história da Índia na sua ligação ao mundo ocidental pelas intervenções sucessivas de Baco, Semíramis e Alexandre Magno:

Pelos portais da cerca a sutileza
Se enxerga da Dedálea facultade,
Em figuras mostrando, por nobreza,
Da Índia a mais remota antiguidade.
Afiguradas vão com tal viveza
As histórias daquela antiga idade,
Que quem delas tiver notícia inteira,
Pela sombra conhece a verdadeira.

Estava um grande exército, que pisa
A terra Oriental que o Idaspe lava;
Rege-o um capitão de fronte lisa,
Que com frondentes tirsos pelejava
(Por ele edificada estava Nisa
Nas ribeiras do rio que manava),
Tão próprio que, se ali estiver Semele,
Dirá, por certo, que é seu filho aquele.

Mais avante, bebendo, seca o rio
Mui grande multidão da Assíria gente,
Sujeita a feminino senhorio
De ua tão bela como incontinente.
Ali tem, junto ao lado nunca frio,
Esculpido o feroz ginete ardente
Com quem teria o filho competência.
Amor nefando, bruta incontinência!

Daqui mais apartadas, tremulavam
As bandeiras de Grécia gloriosas
(Terceira Monarquia), e sojugavam
Até as águas Gangéticas undosas.
Dum capitão mancebo se guiavam,
De palmas rodeado valerosas,
Que já não de Filipo, mas, sem falta,
De progénie de Júpiter se exalta.


5 - «Inclinai por um pouco a majestade»

Se para o rei de Melinde há «nobres paços», para o Samorim «régios apousentos», que haverá para D. Sebastião, a quem o poeta trata tão majestaticamente? Preste-se atenção a estes versos:

Inclinai por um pouco a majestade
Que nesse tenro gesto vos contemplo,
Que já se mostra qual na inteira idade,
Quando subindo ireis ao eterno templo;
Os olhos da real benignidade
Ponde no chão: ...

Como Júpiter, como Neptuno ou Baco, o rei ocupa um lugar superior; é de lá, de um trono, que ele há-de estar atento à oferta do poeta. Mas estará ele só? Não estará antes num palácio com a sua corte? Ou estará numa espécie de anfiteatro, tendo a seu lado as Ninfas do Tejo, a quem antes o poeta se dirigira, e o Povo português o rei que governa e o poema exalta?

O Camões «humilde, baixo e rudo» é um sonhador. Com muita luz, com cristais e diamantes, ouro, pedrarias, riqueza sem limites, fabrica «na fantasia / fantásticas pinturas de alegria» (Canção X), como as dos palácios sobre que reflectimos.

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